Funcionária trans do Hospital Célio de Castro conta sua história de vida, prestes a viver um novo capítulo

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Aos cinco anos, Danielle Scarlat Moreira Silva já falava para sua mãe: “Sou uma menina”. Ao que Maria da Conceição Silva respondia: “Não tenho filha. Só tenho filhos”. A frase repetida à exaustão acompanhou Dany Scarlat – como é chamada pelos amigos – por toda a sua infância e início da adolescência.

Ela se recorda que, aos 8 anos, em Água Formosas, cidade mineira em que nasceu, as amigas da escola lhe emprestavam bonecas para que Dany pudesse levar para casa e brincar. “Era escondido. Quando minha mãe descobria, destruía tudo”, conta. Foi então que a menina decidiu que faria as próprias bonecas com papel crepom e papelão. “Depois de brincar, escondia debaixo do colchão”, diz.

Naquela época, início da década de 80, já tínhamos Roberta Close e Rogéria entre os jurados do Cassino do Chacrinha, programa de grande audiência exibido pela Rede Globo entre 1982 a 1988. Mas a discussão sobre identidade de gênero, orientação sexual e sexo não era disseminada para além dos muros da academia.

“Minha mãe era muito machista. Até os 11 anos, fui criada com mais dois irmãos em um ambiente totalmente masculino. Foi nessa idade que eu descobri que eu não era uma menina. Até então, eu achava que quando eu crescesse, iria engravidar. Foi um momento difícil”, narra Dany.

Depois de Renê, Dany e Dimas, Maria da Conceição teve duas meninas, Daiane e Denise. A chegada das irmãs deu um novo rumo para vida de Dany, que passou a cuidar das crianças como se fossem suas filhas. “Eu tentei me relacionar com mulheres. Tentei várias vezes ser quem eu não era para ver a minha família feliz”, afirma.

Assim como ocorre com muitas pessoas trans, Dany chegou a pensar que ela seria, então, homossexual. “Quando eu achei que fosse homossexual, contei à minha família e meu pai aceitou mais que a minha mãe. Falar com a minha mãe que eu era trans, ela nunca entenderia. Para o meu pai não é tão difícil, ele me chama de meninona”, conta.

Em relação aos irmãos e irmãs, o sentimento de amor e amizade prevalece sobre qualquer condição. “Um dos meus irmãos congrega em uma igreja evangélica, mas não condena”, diz.

Barreiras
Foi em 17 de maio de 1990 que a Organização Mundial de Saúde (OMS) retirou a homossexualidade da lista internacional de doenças.

Por outro lado, a transexualidade ainda consta na Classificação Internacional de Doenças (CID-10), publicação da OMS. No entanto, existe uma expectativa que na revisão da CID-11 a identidade transexual seja retirada dessa lista. A França foi o primeiro país do mundo a deixar de considerar a transexualidade como transtorno mental em 2010.

A trajetória de Dany é uma exceção na realidade brasileira. Somos o país com mais assassinatos de travestis e transexuais. Levantamento da Rede Nacional de Pessoas Trans do Brasil (Rede Trans Brasil) aponta que, em 2016, 25 travestis e transexuais foram assassinados no país.

Um outro estudo, do Grupo Gay da Bahia (GGB), a mais antiga associação de defesa dos homossexuais e transexuais do Brasil, aponta que 2016 foi o ano com o maior número de assassinatos da população LGBT (lésbicas, gays, bissexuais e transexuais) desde o início da pesquisa, há 37 anos. Foram 347 mortes.

Além da violência, as pessoas trans precisam lidar diariamente com o preconceito. De acordo com a Associação Nacional de Travestis e Transexuais (Antra), 90% das pessoas trans têm como única opção de sobrevivência a prostituição.

Com medo de não ser aceita, Dany chegou ao HMDCC em 2015 para a função de Analista de Negócios Contábil. Naquele ano, mesmo já tendo assumido a identidade trans – socialmente e no âmbito familiar -, ela se vestiu de homem para não correr o risco de perder a oportunidade para o preconceito.

Desde então, funcionários e funcionárias do Hospital a conhecem como Daniel Silva. Mas essa história irá mudar em 2018. Dany voltará das férias em janeiro como ela é de verdade: uma mulher trans. “Essa será a minha primeira mudança pública na trajetória profissional”.

Dany conta que já reservou quatro opções de roupa para o primeiro dia de trabalho com sua nova identidade, diz que a expectativa é grande, mas acredita que será bem recebida pelos colegas.

Gerente de RH do HMDCC, Carmen Lúcia Gomes afirma que considerou com naturalidade o pedido de Dany. “Acolhemos a demanda para que a funcionária possa se sentir bem-vinda e, com isso, trabalhar com satisfação. Queremos que a humanização perpasse todos os setores e que o respeito à pessoa possa ser presente”, afirma.

Carmen salienta ainda que, na atual gestão, o potencial humano é pautado como o recurso estratégico mais importante para o desenvolvimento da missão institucional. “Temos como premissa de atuação dentro do HMDCC e descrita no nosso manual de RH não tolerar qualquer conduta – física, verbal ou não verbal – que venha a afetar a dignidade das pessoas – da mulher e do homem – no trabalho. Em especial, conduta que crie ou represente intimidação, hostilidade, humilhação, assédio moral ou sexual, bem como qualquer tipo de discriminação de etnia (raça/cor), gênero, credo religioso, idade, classe social, hábitos, orientação sexual, política, e relacionada à deficiência e mobilidade reduzida, pois fere a dignidade, afeta a produtividade e deteriora o clima e o ambiente de trabalho”, completa.

Com essa decisão, o HMDCC reforça um dos princípios doutrinários do SUS, a equidade.

Autoaceitação
Dany se mudou para BH em 1998. “Cheguei aqui achando que eu era um rapaz assexuado”, lembra. Quatorze anos depois, porém, foi que aceitou a transexualidade. “Em 2012, iniciei um relacionamento que durou quatro anos. Foi esse namorado que me ajudou a reconhecer a minha transexualidade. Ele dizia que não me enxergava como homem”, relata.

Em 2013, Dany deu início ao processo de hormonização, com o acompanhamento de um endocrinologista e uma psicóloga, para adequar o seu corpo à identidade de gênero com a qual se identifica. “A verdade é que até então eu não me aceitava”, diz. Ela não tem vontade de passar pela cirurgia de readequação de sexo. “Eu já tive, mas conheço pessoas que fizeram e não são felizes”.

O Sistema Único de Saúde (SUS) é pioneiro em procedimentos transexualizadores e atende a população trans desde 2008 com terapias hormonais e cirurgias para readequação de sexo.

Sobre a mãe, além da saudade, Dany fica com as boas recordações da relação. “Minha mãe não saía na rua sem meu aval, ela pedia minha opinião para tudo. Mesmo não me aceitando do jeito que eu sou, ela veio para BH doente cuidar de mim quando fiz lipoescultura”. Em 24 de fevereiro de 2018, completará três anos da morte de Maria da Conceição.